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O Limite como Matéria do Desenho:

Um percurso ao encontro da exposição Perceptos e Afectos

A exposição Perceptos e Afectos apresenta trabalhos de Marcia Morelli, Verena Smit e Gustavo Aragoni, artistas que integram o grupo de acompanhamento Hermes Artes Visuais. Suas práticas se conectam por elementos formais e materiais do desenho.

Quando pensamos em desenho, geralmente surge a ideia de uma representação transportada para o papel por meio de gestos. Um ponto se conecta a outro e se torna linha; a linha eventualmente forma contorno; e, o contorno, figura. Seja figurativo ou abstrato, o desenho é um registro de movimento. Na natureza, os movimentos da matéria são governados por leis, mas na arte o movimento se liberta e a linha revela, então, possibilidades imprevistas. A folha, antes em branco – parte da matéria inerte –, se torna plano para o traço, que escapa às conformidades da matéria e adquire livre expressão. Somos, então, instigados a participar com nosso olhar deste movimento à liberdade.

A ausência de cores, característica comum na produção dos três artistas, não é uma regra no desenho, mas, tradicionalmente, os materiais associados ao meio costumam ser o carvão, o grafite e o nanquim. O preto decalcado na superfície do papel suscita contraste que, assim como na escrita, é tão caro ao desenho. Com isso, do encontro privilegiado entre matéria e forma, surge uma simplicidade essencial.

Ao escolherem como título da exposição Perceptos e Afectos, os artistas fazem uma alusão à obra O que é filosofia?, dos filósofos Deleuze e Guattari, na qual encontramos um capítulo intitulado “Perceptos, Afectos e Conceitos”. Segundo os autores, mesmo quando representa algum objeto real, a obra de arte não é fundamentalmente representação, nem tampouco sensação ou perspectiva de um sujeito: é um conjunto de percepções e afecções que se tornam independentes de um modo especial. Se nossas sensações são efêmeras, toda sensação, ao se tornar obra, passa a perdurar. De fato, o que se conserva não é fundamentalmente a materialidade, o papel, a tinta, nem tampouco experiências subjetivas de uma afecção interna e uma percepção externa, mas perceptos e afectos como obra de arte. A obra dá conservação à transitoriedade das sensações internas e externas, adquirindo, assim, vida própria. A referência de Deleuze e Guattari a Van Gogh é especialmente significativa. As cenas retratas por Van Gogh constituem ocasiões de expressão da sua atmosfera interior. A realidade percebida é condicionada e transformada por seus próprias afetos. Vemos, por exemplo, na tela Noite Estrelada, que apresenta a paisagem de Saint-Remy-de-Provence, uma provocante conformidade entre as atmosferas interna e externa, mas o quadro passa a subsistir de modo independente.

Marcia Morelli explora, como um aspecto central do seu trabalho, a ausência. Se todo desenho se dá sobre um suporte material que é um sólido, a supressão de matéria por meio de recortes constitui formas inesperadas. A ideia de figura já fora definida por Platão como “o limite do sólido”, mas a artista elabora também a ideia de figura como o limite no sólido. Em seus trabalhos, o preto não é ausência de cor, mas, por meio de diferentes materiais, sugestão de textura e tessitura, de volume em formas abstratas – formas por vezes fluidas ou geométricas, que contêm, por sua vez, também frinchas ou lacunas. O papel é não apenas suporte para o desenho, mas um meio de explorar a transparência. Em um de seus trabalhos, a leveza do isopor, com o qual forma pontilhados, sugere a ausência como o maior grau de leveza, de objetos que se ausentaram deixando marcas no papel.

 

O trabalho de Verena Smit revela o mesmo interesse pelas experiências-limites. No entanto, o seu artifício não se dá pela ausência, mas pelos limites da semelhança. Palavras são conceitos e os conceitos nascem da abstração das diferenças em favor de identidades. No trabalho da artista, as palavras não valem pelo seu valor de conceito, mas pelos seus aspectos mais sensíveis, que são os que suscitam semelhanças: a sonoridade e a grafia. No desenho da palavra, a artista traça um corte que imprime um desvio na repetição. A substituição por uma palavra semelhante sugere formar com a original um sentido inesperado ou uma narrativa imprevista. Portanto, ela joga com palavras-conceitos de modo a privilegiar, em detrimento da identidade, espaços de semelhança que constituam inversões, torções e ampliações.

 

Gustavo Aragoni compõe com as outras duas artistas uma tríade de elaborações acerca dos limites no desenho. Nos trabalhos do artista, encontramos a questão dos limites entre forma figurada e forma abstrata. A depender do enquadramento que imaginamos, preenchemos cenas concretas ou nos aprofundamos no traço. A dualidade do limite entre desenho e pintura não é o bastante para capturar as provocações do trabalho. Talvez, ainda mais que o limite entre o figurativo e o abstrato, se trate do limite entre o integral e o fragmentado. O gesto escapa aos limites do suporte. Por vezes, o traço encontra continuidade em um distinto suporte espacial. Todavia, trata-se também de diferentes planos no âmbito do próprio desenho, uma vez que diferentes camadas são provocadas, como se desencobrissem o suporte material, mas revelando, na verdade, outro desenho. Finalmente, há sobreposições nas diferentes intensidades dos traços que seguem um mesmo movimento. Embora as formas pareçam simples, um espectador atento encontrará múltiplas camadas de complexidade.

Limites na ausência, na semelhança e nas camadas do traço compõem elementos complementares nas questões formais do desenho que encontramos nesta mostra coletiva. Em todos eles, conforme é oportuno aludir novamente a Deleuze e Guattari, é difícil dizer onde inicia e onde termina a sensação, qual é o seu limite, e esta é a razão da abertura da obra. De alguma maneira, a sensação, na forma de percepto e afecto, passou pelo artista. Ela passa por estados sucessivos de nossas próprias sensações e continua em movimento para além de nós. Temos na exposição Perceptos e Afectos a oportunidade de aprofundar e desenvolver nossa sensibilidade, assumindo como prisma espaço-temporal limites e liberdades por todos os aspectos explorados pelos artistas: ausência, semelhança, intensidade e o que mais couber no movimento de um traço.

Mariana Lorenzi

(...) Gustavo Aragoni composes with the other two artists a triad of elaborations about the limits in drawing. In the artist's works, we find the question of the limits between figurative form and abstract form. Depending on the framework we imagine, we fill in concrete scenes or we go deeper into the line. The duality of the limit between drawing and painting is not enough to capture the provocations of the work. Perhaps even more than the limit between the figurative and the abstract, it is the limit between the integral and the fragmented. The gesture escapes the limits of the support. Sometimes, the trace finds continuity in a different spatial support. However, it is also about different planes within the drawing itself, since different layers are provoked, as if uncovering the material support, but revealing, in fact, another drawing. Finally, there are overlaps in the different intensities of the strokes that follow the same movement. Although the forms appear simple, an attentive viewer will find multiple layers of complexity.

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