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Título 2

                                                                                                                              

Tra(u)ma

Na mitologia grega, Caos é a mais antiga forma de consciência divina, a partir da qual surgiram todos os outros deuses e o próprio universo. Amorfo e indefinível, tudo o que foi criado a partir dele se deu através de múltiplas divisões disto que era, a um só tempo, tudo enada, e já continha todos os elementos para que se formasse o Cosmos (que significa ordem). A partir das cisões deste todo indiferenciado é que foram se organizando os planetas, o céu, os mares, os reinos animal, vegetal e mineral, e a humanidade. A ocupação de Gustavo Aragoni no Casarão guarda, dadas as devidas proporções, certa analogia com este mito. Quando chegou ao local, desocupado há tempos, encontrou aqui elementos abandonados como cadeiras, alguns armários, um vaso de planta ainda com terra. Sem uso, essas coisas se apresentavam como um nada, sem significados definidos. Ao longo de dois meses, o artista imergiu na relação com os objetos e o ambiente numa exploração sem planejamento e, portanto, sem um resultado determinado no horizonte. Outros itens descartados trazidos de derivas pelas ruas próximas chegaram e foram incorporados ao “acervo de interesses sensoriais” de Aragoni. Essas coletas são randômicas, mas afetivas, quase como se os materiais é que escolhessem o artista. Seu método é intuitivo, tributário da filosofia de Bergson, que propõe que o conhecimento das coisas resulte da experiência no presente, sem a mediação de conceitos e/ou análises. Observar, tocar, amassar, rasgar são assim algumas das ações que surgem neste processo de entendimento das características de cada material e de como ele se aproxima ou se distingue dos outros neste microuniverso. Alguns destes gestos enérgicos de dissecar a matéria evocam a violência de um trauma. Mas então, pouco a pouco, vão sendo tramados desenhos espaciais e agrupamentos compositivos, e o ambiente vai ganhando algum nexo. Mas, atenção: não espere encontrar narrativas lineares ou explicações. O que se apresenta nestes espaços é um vestígio de muitas ações e não um final (melhor seria chamar de intervalo) passível de ser interpretado com os instrumentos usuais da razão. A razão, aliás, quando ameaça intrometer-se na experiência, é rechaçada pelo artista através do procedimento de escrever palavras ou frases de trás para a frente. Mesmo a cidade, que teima em tentar impor seu regramento do tempo com luzes e barulhos, está mantida do lado de fora. As definições estão abolidas e aqui só existe o agora. Talvez nem seja adequado dizer “aqui” sobre este “não lugar”. Já o “agora”, esta ideia eternamente inapreensível, pode caber nesta proposição de que nada, na verdade, é - tudo está.​ 

In Greek mythology, Chaos is the oldest form of divine consciousness, from which all the other gods and the universe itself emerged. Amorphous and undifferentiated, everything that was created from it occurred through multiple divisions of this thing that was, at the same time, everything and nothing, and already contained all the elements to form the Cosmos (which means order). From the divisions of this undifferentiated whole, the planets, the sky, the seas, the animal, vegetal and mineral kingdoms, and humanity were organized. Gustavo Aragoni's occupation of the Casarão keeps, given the due proportions, a certain analogy with this myth. When he arrived at the place, unoccupied for some time, he found here abandoned elements such as chairs, some cupboards, a plant pot with soil still in it. Without use, these things presented themselves as nothing, without defined meanings. Over the course of two months, the artist immersed himself in the relationship with the objects and the environment in an exploration without planning and, therefore, without a determined result on the horizon. Other discarded items brought from drifts through the nearby streets arrived and were incorporated into Aragoni's "collection of sensory interests". These collections are random, but affective, almost as if the materials chose the artist. His method is intuitive, a tributary of Bergson's philosophy, which proposes that the knowledge of things results from experience in the present, without the mediation of concepts and/or analysis. Observing, touching, kneading, tearing are some of the actions that arise in this process of understanding the characteristics of each material and how it approaches or distinguishes itself from others in this micro-universe. Some of these energetic gestures of dissecting matter evoke the violence of a trauma. But then, little by little, spatial designs and compositional groupings are plotted, and the environment gains some nexus. But beware: don't expect to find linear narratives or explanations. What is presented in these spaces is a trace of many actions, not an ending (it would be better to call it an interval) that can be interpreted with the usual instruments of reason. Reason, by the way, when it threatens to intrude into the experience, is rebuffed by the artist through the procedure of writing words or phrases backwards. Even the city, which stubbornly tries to impose its regulation of time with lights and noise, is kept outside. Definitions are abolished, and here only the now exists. Perhaps it is not even appropriate to say "here" about this "non-place". But the "now," this eternally inapprehensible idea, can fit this proposition that nothing, in fact, is - everything is being

 

sylvia werneck - tra(u)ma, 2021

“O espaço concreto foi extraído das coisas. Elas não estão nele; é ele que está nelas”. (Henri Bérgson).

 

Por três meses, Gustavo Aragoni ocupou uma sala comercial no Edifício Vera, no triângulo histórico. Nessa sala depositou diferentes objetos que encontrou em suas caminhadas pela cidade – eram materiais aleatórios, tais como, plástico, espuma, barbante, madeira, lonas, papéis, cordas, insumos de construção civil, lixo, entre outros. Para alguns, são coisas desprovidas de qualquer fascínio. Para outros, são objetos que marcam a experiência do contemporâneo. Isto porque são acidentais e conectados à vida. Tudo o que entrou, jamais saiu. O lugar foi tomado pelos resquícios da cidade. O artista tornou-se um colecionador de detritos; a sala um depósito de acúmulos ordinários. Onde está a arte nesse processo de ocupação? Está na coleta de resíduos da cidade? Não tão somente! Nesse espaço, o artista rasgou, cortou, dispôs dos objetos; escreveu mensagens, manchou as paredes e, em todas as ações, se relacionou com aquelas materialidades (a do espaço e a das coisas). Foram performances, algumas vezes, violentas, que impuseram o corpo do artista sobre os materiais. Na interação corpo-objeto, a arte emergiu abarrotada de sentimentos e (res) sentimentos; o espaço conteve tudo isso. A intervenção do artista e os destroços dos objetos, de fato, ocuparam a antiga sala de escritório. Tem-se, então, do ordenamento do mundo corporativo ao caótico “estado de arte”, o reflexo do espaço nas coisas. Mas, o que se vê agora? A observação da memória do instante efêmero da arte. As marcas nas paredes e as sobras dos objetos, onde nem tudo é o que parece (o pó branco ao chão não é cal, mas sim farinha de trigo) são reminiscências que dão o índice que algo ali aconteceu; que a instalação sofreu severa intercessão do artista e hoje está aberta à interação do público. Sensação confirmada pela série de registros fotográficos que mostram o processo e as performances, como por exemplo, em Exercícios para decompor um corpo no. 1, 2 e 3, ou, ainda, Estudos para (des) configurar – trabalhos nascidos da ocupação, entre agosto e outubro de 2020 – uma experiência que, ao final, une espaço, objetos, corpo (do artista e do público), processo, memória e vida. 

"Concrete space has been extracted from things. They are not in it; it is he who is in them." (Henri Bérgson).

 

For three months Gustavo Aragoni occupied a commercial room in the Vera Building, in the historic triangle. In this room he deposited different objects that he found on his walks around the city - they were random materials, such as plastic, foam, string, wood, canvas, paper, rope, construction supplies, garbage, among others. For some, these are things devoid of any fascination. For others, they are objects that mark the experience of the contemporary. This is because they are accidental and connected to life. Everything that went in, never came out. The place was taken by the remnants of the city. The artist has become a collector of detritus; the room a depository of ordinary accumulations. Where is art in this occupation process? Is it in the collection of the city's waste? Not only! In this space, the artist tore, cut, arranged the objects; wrote messages, stained the walls and, in all actions, related to those materialities (that of the space and that of things). They were performances, sometimes violent, that imposed the artist's body over the materials. In the body-object interaction, art emerged crammed with feelings and (re)feelings; the space contained it all. The artist's intervention and the debris of the objects, in fact, occupied the old office room. We have, then, from the orderliness of the corporate world to the chaotic "state of art", the reflection of space in things. But what do we see now? The observation of the memory of the ephemeral instant of art. The marks on the walls and the leftovers of objects, where not everything is what it seems (the white powder on the floor is not lime, but wheat flour) are reminiscences that give the index that something happened there; that the installation suffered severe intercession by the artist and today is open to public interaction. A feeling confirmed by the series of photographic records that show the process and the performances, as for example in Exercícios para decompor um corpo no. 1, 2 e 3, or, yet, Estudos para (des) configurar - works born from the occupation, between August and October, 2020 - an experience that, in the end, unites space, objects, body (of the artist and of the public), process, memory and life. 

alecsandra matias de oliveira - in-determinável, 2020.

“Sou um apanhador de desperdícios: Amo os restos como as boas moscas"
Manoel de Barros

A palavra desenho, no processo criativo de Gustavo Aragoni, deve ser usada para descrever aquilo que extrapola os limites da concepção tradicional. Linha, plano e superfície costumam invadir o espaço e ganhar volume em esculturas improváveis e ações performáticas. Também o gesto, aqui, vai além da mão ou mesmo do braço – na verdade, todo o corpo do artista participa destes traçados que, por vezes, se aproximam de movimentos executados como que em estado de transe, num imbricamento com os mais prosaicos materiais, recolhidos aleatoriamente, com os quais Gustavo estabelece uma relação de entrega total ao momento. A própria substância aderida a outra - à qual chamamos de “figura” - pode surgir não do lápis ou do carvão, mas do arranhar o papel, do pisar a poeira ou do esparramar a farinha de trigo. Como escolha, a composição resulta de uma sequência de atos não programados e está fadada a se transformar a qualquer instante. Trata-se de uma prática, mais que de um método, que recusa a estabilidade, escapa das definições e subverte hierarquias. Nos desenhos onde o preto se impõe, é a luz que vaza por entre os riscos que emerge. Nas instalações, são as sobras da experiência que povoam o espaço. A paleta do artista se compõe primordialmente do preto (ausência total de luz) e do branco (saturação total), e acolhe, por vezes, cinzas e ocres esmaecidos. Esta parcimônia cromática mira o essencial. É preciso pausar o olhar e despir a mente para captar as miudezas, os vazios entre as coisas – é neste intervalo indefinido que mora o ato criador.

I am a catcher of waste: I love leftovers like good flies" Manoel de Barros.​ The word drawing, in Gustavo Aragoni's creative process, should be used to describe what extrapolates the limits of traditional conception. Line, plane, and surface usually invade space and gain volume in improbable sculptures and performative actions. Here, gesture, too, goes beyond the hand or even the arm - in fact, the artist's entire body participates in these traces that sometimes come close to movements performed as if in a state of trance, in an intermingling with the most prosaic of materials, collected at random, with which Gustavo establishes a relationship of total surrender to the moment. The very substance adhered to another - which we call "figure" - may arise not from pencil or charcoal, but from scratching the paper, stepping on dust, or scattering flour. As a choice, composition results from a sequence of unprogrammed acts and is bound to change at any moment. It is a practice, rather than a method, that refuses stability, escapes definitions, and subverts hierarchies. In the drawings where black imposes itself, it is the light that leaks through the scratches that emerges. In the installations, it is the leftovers of the experience that populate the space. The artist's palette is composed primarily of black (total absence of light) and white (total saturation), and sometimes includes faded grays and ochres. This chromatic parsimony aims at the essential. It is necessary to pause the gaze and undress the mind to capture the offal, the voids between things - it is in this undefined interval that the creative act resides.

sylvia werneck - holofote, lux espaço de arte, 2021




"Não se pode criar experiência. É preciso passar por ela" Albert Camus

Última referência estável da modernidade, o corpo é visto como o lugar do ser, da razão e da consciência – torna-se a baliza para a formação da identidade e, simultaneamente, da subjetividade. Sob essa perspectiva, o ser racional é dono de seu pensamento e ação. Porém, o corpo, como instrumento e suporte dos trabalhos de Gustavo Aragoni (Osasco, 1975), traz a intuição, o inesperado e o conceito de experiência sob as bases do tempo contemporâneo. Dedicado à pesquisa em filosofia contemporânea, desenho e instalação, Aragoni estuda pintura e desenho com Dudi Maia Rosa e ilustração com Fernando Vilela, em 2013. No ano seguinte, frequenta o curso de desenho de animação no Centro Universitário Belas-Artes. Atualmente participa do grupo de acompanhamento do Hermes Artes Visuais, com orientação dos artistas Nino Cais e Carla Chaim. Nesse percurso investigativo, o artista tem trilhado caminhos originados pelo figurativo e sustentados pelo desenho. Porém, suas últimas criações passam pela linguagem abstrata, muito próxima ao gestual e às influências da arte Povera. ​Promessa no cenário atual das artes visuais, Aragoni descreve seu processo criativo a partir da coleta de objetos banais que encontra ao acaso: com esses objetos em mãos, o artista percebe esses itens como “corpos que podem vir a ser” (cortados, recortados, dobrados, entintados etc.) – essa é a ação de seu corpo sobre outros corpos, ou ainda, um acontecimento/performance no qual emerge a “arte”. No fim, a obra é o registro deste exercício sobre os corpos – o testemunho da experiência da arte. Nela, a intuição, o improviso e o subjetivo ganham do racional. Ao espectador restam memórias: nos trabalhos expostos, em paredes brancas e de modo apartado, sente-se a reminiscência da autonomia da obra na qual o isolamento potencializa a experiência. O que de feição inversa se dá nas instalações que, longe de serem assépticas, trazem a contaminação do tempo contemporâneo. Já, nos expostos em conjunto (entre eles, o dípticos e trípticos) persiste uma narrativa solta construída por gestos densos e até mesmo violentos – em resumo, todos os trabalhos apontam para a entrega à experiência. 


You can't create an experience. You have to go through it" Albert Camus. The last solid reference of modernity, the body is seen as the place of being, reason and conscience - it becomes the beacon for the formation of identity and, simultaneously, subjectivity. From this perspective, the rational being owns his thought and action. However, the body, as an instrument and support for the works of Gustavo Aragoni (Osasco, 1975), brings intuition, the unexpected and the concept of experience under the foundations of contemporary time. Dedicated to research in contemporary philosophy, drawing and installation, Aragoni studies painting and drawing with Dudi Maia Rosa and illustration with Fernando Vilela, in 2013. In the following year, he attended the animation drawing course at the Centro Universitário Belas-Artes. Currently he participates in the monitoring group of Hermes Artes Visuais, under the guidance of artists Nino Cais and Carla Chaim. In this investigative pathway, the artist has followed directions originated by the figurative and supported by drawing. However, his latest creations include abstract language, close to gestures and the influences of Povera art. Promising in the current visual arts scene, Aragoni describes his creative process based on the collection of banal objects that he finds at random: with these objects in hand, the artist perceives these items as “bodies that can be” (cut, cropped, folded, inked etc.) - this is the action of his body on other bodies, or even, an event / performance in which the “art” emerges. In the end, the work itself is the record of this exercise upon bodies - the testimony of the experience of art. Within it, intuition, improvisation, and the subjective triumph over rationality. Memories are what remains to the viewer: in the works exhibited, on white walls and in a separate way, one feels the reminiscence of the work's autonomy in which isolation enhances the experience. The opposite of what happens in the installations that, far from being aseptic, bring the contamination of contemporary time. Whilst in the exposed together (among them, the diptychs, and triptychs) there remains a loose narrative built by dense and even violent gestures - in short, all the works point to the delivery to the experience.

alecsandra matias de oliveira - aínas magazine, sardenha, p. 56 - 61, 02 nov. 2020.

(...) Gustavo Aragoni. O artista cria uma relação entre a fotografia e a escultura, ao procurar tornar fixo através da foto um volume de materiais que de outro modo desmoronariam. Além de voltar-se para o cotidiano, utilizando materiais que encontra no ambiente urbano, apresenta também a dinamicidade do corpo que torce, corta, rasga, empilha e derruba. Seu conjunto de ações, antes de priorizar a criação de objetos, procura destacar a prática e o processo

(...) Gustavo Aragoni. The artist creates a relationship between photography and sculpture by seeking to make fixed through the photo a volume of materials that would otherwise crumble. Besides turning to everyday life, using materials he finds in the urban environment, he also presents the dynamics of the body that twists, cuts, tears, stacks, and knocks down. His set of actions, before prioritizing the creation of objects, seeks to highlight the practice and the process (...) 

marcelo amorim - exposição coletiva "útimos dias", residência fonte, são paulo, 2020.

(...) A gestualidade pulsante do expressionismo abstrato permanece influenciando artistas que trabalham com pintura e desenho na arte contemporânea. Como vemos nos trabalhos de Gustavo Aragoni, o gesto é capaz de criar dinâmicas fluidas através da repetição e sobreposição, com um resultado que nos permite visualizar o processo e imaginar os inúmeros movimentos necessários para esta composição

(...) The pulsing gesturing of abstract expressionism continues to influence artists who work with painting and drawing in contemporary art. As we see in Gustavo Aragoni's works, gesture is capable of creating fluid dynamics through repetition and superposition, with a result that allows us to visualize the process and imagine the countless movements required for this composition (...)

diogo barros - revista digital artsoul, 2020.

O Limite como Matéria do Desenho:

Um percurso ao encontro da exposição Perceptos e Afectos

A exposição Perceptos e Afectos apresenta trabalhos de Marcia Morelli, Verena Smit e Gustavo Aragoni, artistas que integram o grupo de acompanhamento Hermes Artes Visuais. Suas práticas se conectam por elementos formais e materiais do desenho. Quando pensamos em desenho, geralmente surge a ideia de uma representação transportada para o papel por meio de gestos. Um ponto se conecta a outro e se torna linha; a linha eventualmente forma contorno; e, o contorno, figura. Seja figurativo ou abstrato, o desenho é um registro de movimento. Na natureza, os movimentos da matéria são governados por leis, mas na arte o movimento se liberta e a linha revela, então, possibilidades imprevistas. A folha, antes em branco – parte da matéria inerte –, se torna plano para o traço, que escapa às conformidades da matéria e adquire livre expressão. Somos, então, instigados a participar com nosso olhar deste movimento à liberdade.​ A ausência de cores, característica comum na produção dos três artistas, não é uma regra no desenho, mas, tradicionalmente, os materiais associados ao meio costumam ser o carvão, o grafite e o nanquim. O preto decalcado na superfície do papel suscita contraste que, assim como na escrita, é tão caro ao desenho. Com isso, do encontro privilegiado entre matéria e forma, surge uma simplicidade essencial.

Ao escolherem como título da exposição Perceptos e Afectos, os artistas fazem uma alusão à obra O que é filosofia?, dos filósofos Deleuze e Guattari, na qual encontramos um capítulo intitulado “Perceptos, Afectos e Conceitos”. Segundo os autores, mesmo quando representa algum objeto real, a obra de arte não é fundamentalmente representação, nem tampouco sensação ou perspectiva de um sujeito: é um conjunto de percepções e afecções que se tornam independentes de um modo especial. Se nossas sensações são efêmeras, toda sensação, ao se tornar obra, passa a perdurar. De fato, o que se conserva não é fundamentalmente a materialidade, o papel, a tinta, nem tampouco experiências subjetivas de uma afecção interna e uma percepção externa, mas perceptos e afectos como obra de arte. A obra dá conservação à transitoriedade das sensações internas e externas, adquirindo, assim, vida própria. A referência de Deleuze e Guattari a Van Gogh é especialmente significativa. As cenas retratas por Van Gogh constituem ocasiões de expressão da sua atmosfera interior. A realidade percebida é condicionada e transformada por seus próprias afetos. Vemos, por exemplo, na tela Noite Estrelada, que apresenta a paisagem de Saint-Remy-de-Provence, uma provocante conformidade entre as atmosferas interna e externa, mas o quadro passa a subsistir de modo independente.

Marcia Morelli explora, como um aspecto central do seu trabalho, a ausência. Se todo desenho se dá sobre um suporte material que é um sólido, a supressão de matéria por meio de recortes constitui formas inesperadas. A ideia de figura já fora definida por Platão como “o limite do sólido”, mas a artista elabora também a ideia de figura como o limite no sólido. Em seus trabalhos, o preto não é ausência de cor, mas, por meio de diferentes materiais, sugestão de textura e tessitura, de volume em formas abstratas – formas por vezes fluidas ou geométricas, que contêm, por sua vez, também frinchas ou lacunas. O papel é não apenas suporte para o desenho, mas um meio de explorar a transparência. Em um de seus trabalhos, a leveza do isopor, com o qual forma pontilhados, sugere a ausência como o maior grau de leveza, de objetos que se ausentaram deixando marcas no papel.

 

O trabalho de Verena Smit revela o mesmo interesse pelas experiências-limites. No entanto, o seu artifício não se dá pela ausência, mas pelos limites da semelhança. Palavras são conceitos e os conceitos nascem da abstração das diferenças em favor de identidades. No trabalho da artista, as palavras não valem pelo seu valor de conceito, mas pelos seus aspectos mais sensíveis, que são os que suscitam semelhanças: a sonoridade e a grafia. No desenho da palavra, a artista traça um corte que imprime um desvio na repetição. A substituição por uma palavra semelhante sugere formar com a original um sentido inesperado ou uma narrativa imprevista. Portanto, ela joga com palavras-conceitos de modo a privilegiar, em detrimento da identidade, espaços de semelhança que constituam inversões, torções e ampliações.

 

Gustavo Aragoni compõe com as outras duas artistas uma tríade de elaborações acerca dos limites no desenho. Nos trabalhos do artista, encontramos a questão dos limites entre forma figurada e forma abstrata. A depender do enquadramento que imaginamos, preenchemos cenas concretas ou nos aprofundamos no traço. A dualidade do limite entre desenho e pintura não é o bastante para capturar as provocações do trabalho. Talvez, ainda mais que o limite entre o figurativo e o abstrato, se trate do limite entre o integral e o fragmentado. O gesto escapa aos limites do suporte. Por vezes, o traço encontra continuidade em um distinto suporte espacial. Todavia, trata-se também de diferentes planos no âmbito do próprio desenho, uma vez que diferentes camadas são provocadas, como se desencobrissem o suporte material, mas revelando, na verdade, outro desenho. Finalmente, há sobreposições nas diferentes intensidades dos traços que seguem um mesmo movimento. Embora as formas pareçam simples, um espectador atento encontrará múltiplas camadas de complexidade.

Limites na ausência, na semelhança e nas camadas do traço compõem elementos complementares nas questões formais do desenho que encontramos nesta mostra coletiva. Em todos eles, conforme é oportuno aludir novamente a Deleuze e Guattari, é difícil dizer onde inicia e onde termina a sensação, qual é o seu limite, e esta é a razão da abertura da obra. De alguma maneira, a sensação, na forma de percepto e afecto, passou pelo artista. Ela passa por estados sucessivos de nossas próprias sensações e continua em movimento para além de nós. Temos na exposição Perceptos e Afectos a oportunidade de aprofundar e desenvolver nossa sensibilidade, assumindo como prisma espaço-temporal limites e liberdades por todos os aspectos explorados pelos artistas: ausência, semelhança, intensidade e o que mais couber no movimento de um traço.

The Limit as Drawing Matter: A journey to the encounter of the exhibition Percepts and Affects. The exhibition Perceptos e Afectos presents works by Marcia Morelli, Verena Smit and Gustavo Aragoni, artists who integrate the follow group Hermes Artes Visuais. Their practices are connected by formal and material elements of drawing. When we think of drawing, the idea of a representation transported to paper by means of gestures usually comes up. A point connects to another and turns into a line. Whether figurative or abstract, drawing is a record of movement. In nature, the movements of matter are governed by laws, but in art the movement is set free and the line then reveals unforeseen possibilities. The previously blank sheet of paper - part of inert matter - becomes the plane for the line, which escapes the conformities of matter and acquires free expression. The absence of color, a common characteristic in the production of the three artists, is not a rule in drawing, but, traditionally, the materials associated with the medium are usually charcoal, graphite, and Indian ink. The black decal on the surface of the paper evokes contrast, which, as in writing, is so dear to drawing. Thus, from the privileged encounter between matter and form, an essential simplicity emerges.

 

By choosing Percepts and Affects as the title of the exhibition, the artists allude to the work What is Philosophy? by the philosophers Deleuze and Guattari, in which we find a chapter entitled "Percepts, Affects, and Concepts". According to the authors, even when it represents some real object, the work of art is not fundamentally a representation, nor is it a sensation or perspective of a subject: it is a set of perceptions and affections that become independent in a special way. If our sensations are ephemeral, every sensation, when it becomes a work of art, becomes enduring. In fact, what is conserved is not fundamentally the materiality, the paper, the ink, nor subjective experiences of an internal affection and an external perception, but percepts and affections as a work of art. The work gives conservation to the transience of internal and external sensations, thus acquiring a life of its own. Deleuze and Guattari's reference to Van Gogh is especially significant. The scenes portrayed by Van Gogh are occasions of expression of his inner atmosphere. The perceived reality is conditioned and transformed by his own affections. We see, for example, in the canvas Starry Night, which presents the landscape of Saint-Remy-de-Provence, a provocative conformity between the internal and external atmospheres, but the painting subsists independently.

Marcia Morelli explores absence as a central aspect of her work. If every drawing takes place on a material support that is a solid, the suppression of matter by means of cut-outs constitutes unexpected forms. The idea of figure was already defined by Plato as "the limit of the solid," but the artist also elaborates the idea of figure as the limit in the solid. In her works, black is not an absence of color, but, through different materials, a suggestion of texture and tessitura, of volume in abstract forms - sometimes fluid or geometric forms, which also contain gaps. Paper is not only a support for drawing, but a means of exploring transparency. In one of her works, the lightness of Styrofoam, with which she forms dotted lines, suggests absence as the highest degree of lightness, of objects that have disappeared leaving marks on the paper.

 

Verena Smit's work reveals the same interest in borderline experiences. However, her artifice is not through absence, but through the limits of sameness. Words are concepts, and concepts are born from the abstraction of differences in favor of identities. In the artist's work, words are not worth for their concept value, but for their most sensitive aspects, which are the ones that arouse similarities: sonority and spelling. In drawing the word, the artist traces a cut that imprints a deviation in the repetition. The substitution with a similar word suggests forming with the original an unexpected meaning or an unforeseen narrative. Therefore, she plays with word-concepts in order to privilege, to the detriment of identity, spaces of similarity that constitute inversions, twists, and amplifications.

Gustavo Aragoni composes with the other two artists a triad of elaborations about the limits in drawing. In the artist's works, we find the question of the limits between figurative form and abstract form. Depending on the framework we imagine, we fill in concrete scenes or we go deeper into the line. The duality of the limit between drawing and painting is not enough to capture the provocations of the work. Perhaps even more than the limit between the figurative and the abstract, it is the limit between the integral and the fragmented. The gesture escapes the limits of the support. Sometimes, the trace finds continuity in a different spatial support. However, it is also about different planes within the drawing itself, since different layers are provoked, as if uncovering the material support, but revealing, in fact, another drawing. Finally, there are overlaps in the different intensities of the strokes that follow the same movement. Although the forms appear simple, an attentive viewer will find multiple layers of complexity.

 

Limits in the absence, in the similarity, and in the layers of the trace compose complementary elements in the formal questions of the drawing we find in this group show. In all of them, as it is appropriate to allude again to Deleuze and Guattari, it is difficult to say where sensation begins and ends, what is its limit, and this is the reason for the opening of the work. Somehow, sensation, in the form of percept and affect, has passed through the artist. It passes through successive states of our own sensations and continues in motion beyond us. We have in the exhibition Percepts and Affects the opportunity to deepen and develop our sensibility, assuming as a space-time prism limits and liberties for all the aspects explored by the artists: absence, similarity, intensity, and whatever else fits in the movement of a stroke.

mariana lorenzi - exposição coletiva "perceptos e afectos", vão espaço de arte, 2018

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